30 de junho de 2009

Cadê você, Ulisses?

"Com Ulisses havia dado os primeiros passos para alguma coisa que até então desconhecia. Mas poderia agora avançar sozinha? Numa das últimas vezes ela lhe perguntara com um sorriso encabulado, procurando disfarçar com um tom levemente irônico: estou sendo autodidata? Ele respondera:
― Acho que sim. Muitas coisas você só tem se for autodidata, se tiver coragem de ser. Em outras, terá que saber e sentir a dois. Mas eu espero. Espero que você tenha a coragem de ser autodidata apesar dos perigos, e espero também que você queira ser dois em um. Sua boca, como eu já lhe disse, é de paixão. É através da boca que você passará a comer o mundo, e então a escuridão de teus olhos não vai se aclarar mais vai iridecer.

Ele não lhe telefonava, ela não o via: ocorreu-lhe então que ele tivesse desaparecido para que ela aprendesse sozinha.
...........
De repente Lóri não suportou mais e telefonou para Ulisses:
― Que é que eu faço, é de noite e eu estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e eu estou toda alerta no escuro.
Houve uma pausa, ela chegou a pensar que Ulisses não ouvira. Então ele disse com voz calma e apaziguante:
― Agüente.
"

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
C.L.

29 de junho de 2009

Departures





Quando o sonho pesa, o sentido vem da sua não realização.

23 de junho de 2009

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão
de vida ou morte _
será arte?


Ferreira Gullar

22 de junho de 2009

Vagalma

Tentei me encontrar em você
No labirinto espelhado sua luz ofusca o limite da minha alma
Vagando pelo mundo ela continua longe de mim
Você, perdido de sí, perpetua minha busca
Será que só conseguirei reavê-la quando em mim você se encontrar?

2 de junho de 2009

Terceira perna

"Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas duas pernas. Sei que somente com duas pernas posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.

Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? ...... É tão difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma ideia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu me encarnava, e nem mesmo sentira o grande esforço de construção que era viver. A ideia que fazia de pessoa vinha da minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e agora? estarei mais livre?
"

G.H de Clarice