22 de julho de 2009

Le corps, lieu d´utopies

Tenho lido Foucault. Me sinto tomada, ou melhor alçada a um lugar onde tudo se dá de maneira inteira e integrada, portanto complexa. Escolhi um texto traduzido por Macelo Coelho que fez parte de uma conferência ocorrida em 1966.


Basta eu acordar, diz Foucault, que não posso escapar deste lugar, o meu corpo. Posso me mexer, andar por aí, mas não posso me deslocar sem ele. Posso ir até o fim do mundo, posso me encolher debaixo das cobertas, mas o corpo sempre estará onde eu estou. Ele está aqui, irreparavelmente: não está nunca em outro lugar. Meu corpo é o contrário de uma utopia. Todos os dias, continua Foucault, eu me vejo no espelho: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, nenhum cabelo mais... Verdadeiramente, nada bonito. Meu corpo é uma jaula desagradável. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. É o lugar a que estou condenado sem recurso.
É possível que contra esse corpo tenham nascido todas as utopias, dele nasce a utopia original --a de um corpo incorporal: o país das fadas, dos elfos, dos gênios, onde as feridas se curam imediatamente, onde caímos de uma montanha sem nos machucar, onde podemos ficar invisíveis.
Há outra utopia dedicada a desfazer o corpo é o país dos mortos. A múmia é o corpo utópico que desafia o tempo. Há as pinturas e esculturas dos túmulos, que prolongam uma juventude que nunca vai passar, que será eterna. Meu corpo se torna sólido como uma coisa, e eterno como um deus.
A outra, a maior utopia criada contra o corpo é o grande mito da alma, que funciona maravilhosamente dentro do meu corpo, mas escapa dele. É bela, pura, branca, ao contrário do meu corpo. Durará para sempre. É meu corpo luminoso, purificado.
Assim, pela mágica dessas utopias, meu corpo pesado e feio desaparece magicamente. Recebo-o de volta fulgurante e perpétuo.
Mas meu corpo, nele mesmo, seus recursos próprios de fantástico. Tem lugares sem-lugar. Tem seus lugares obscuros e praias luminosas. Minha cabeça é uma estranha caverna, com duas aberturas, meus olhos. E, se as coisas entram na minha cabeça, ficam ao mesmo tempo fora delas.
Corpo incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Absolutamente visível --porque sei o que é ser visto e ver os outros. Mas esse corpo é também tomado por uma certa invisibilidade: minha nuca, por exemplo. Minhas costas: conheço seus movimentos, sua posição, mas não as vejo. Corpo que é um fantasma, que só posso ver pelo truque, pela miragem de um espelho.
Esse corpo não é uma coisa: anda, mexe, quer, se deixa atravessar sem resistências por minhas intenções. Só quando estou doente –dor de estômago, febre-- ele se torna coisa, opaca, independente de mim.
Não, o corpo não precisa de fadas e almas para ser utópico, visível e invisível, transparente e concreto. Para que eu seja utopia, preciso apenas ser... um corpo. As utopias não apagam o corpo: nasceram dele, para só depois, talvez, voltarem-se contra ele.
Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. O sonho de um corpo imenso, o mito dos gigantes, de Prometeu, é uma utopia. O sonho de voar também.
O corpo é também ator utópico quando se pensa nas máscaras, na tatuagem, na maquiagem. Não se trata, aqui, propriamente, de adquirir um outro corpo, mais bonito ou reconhecível.
Trata-se de fazer o corpo entrar em comunicação com poderes secretos, forças invisíveis. Uma linguagem enigmática e sagrada se deposita sobre o corpo, chamando sobre ele o poder de um deus, a força surda do sagrado, a vivacidade do desejo. Fazem do corpo o fragmento de um espaço imaginário, que entra em comunicação com o universo dos outros, dos deuses, das pessoas que queremos seduzir.
O corpo é arrancado de seu espaço próprio e arremessado a um outro espaço. As vestimentas religiosas, por exemplo, fazem o indivíduo entrar no espaço cercado do sagrado, ou na comunhão da sociedade. Tudo o que toca no corpo, uniformes, diademas, faz florescerem as utopias internas do corpo.
E a carne nela mesma pode ser também utópica. Faz o corpo voltar-se contra si: o outro mundo, o contra-mundo, penetra nesse corpo, que se torna produto de seus fantasmas: o corpo de um dançarino, por exemplo, é um corpo dilatado pelo espaço –espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo. O corpo do mártir acolhe a dor e a salvação. O corpo de um drogado, de um possuído, de um estigmatizado, recebe em si o que lhe é exterior.
Bobagem dizer portanto, como fiz no início, que meu corpo nunca está em outro lugar. Meu corpo está sempre em outro lugar. Está ligado a todos os outros lugares do mundo, e está num outro lugar que é o além do mundo. É em relação ao corpo que existe uma esquerda e uma direita, um atrás e um na frente, um embaixo e um em cima.
O corpo está no centro do mundo, nódulo utópico a partir do qual penso, sonho, me comunico. O corpo, como a Cidade de Deus, não tem lugar, e é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis.
Apenas o espelho e o cadáver selam e calam essa voragem utópica. Os dois estão num outro lugar impenetrável, mas nesse momento já não sou eu mesmo. Para que eu seja eu mesmo, no meu corpo, sem utopia, é preciso uma situação bem definida. Só o ato amoroso, quando nos entregamos a ele, acalma a utopia do nosso corpo: por isso é tão próximo, no imaginário, ao espelho e à morte. É porque só no amor o meu corpo está aqui.

13 de julho de 2009

Ousando a acreditar no que não se vê



Segunda-feira, aqui estou eu treinando minha capacidade de nutrir com afeto e carinho os tesouros da sensibilidade. Os dias seguem num automatismo louco, mas enquanto isso eu espero.... e me demoro um pouco mais aguardando o dia em que meu corpo e alma vão dançar juntos, lindos e formosos em plena concretude da vida. Até que isso aconteça a semente continua gestando em silêncio no escuro, ou sob a luz vermelha de um quarto de paredes amarelas.


6 de julho de 2009

Corpo e espírito


Intervalo, 1927-28/ Magritte


"Uma caracteística importante do acrobata é a capacidade de se libertar das condições normais oferecidas pelo corpo. Magritte descreve isso como o espírito que - tal como o corpo - caminha, se afasta ou fica".


Am I late again?

................ chegou em casa assustado. Olhou-se no espelho, ainda não conseguia acreditar no que havia feito. A mão tremia e o sangue não parava de escorrer. Pegou a toalha de rosto para se limpar, a torneira jorrava. Os olhos fixos à imagem procuravam o homem de meia hora atrás. Ele tinha saído de casa apenas para comer um pastel na barraca do “Seu José”, como fazia todas as quintas. A feira ficava na rua de trás, paralela a sua, não arriscava ir muito longe do sobrado onde morava, e como sempre, havia feito o mesmo caminho, passando atrás da igreja. Saiu de casa atrasado, isso é verdade.... Quem sabe se estivesse na hora certa nada disso teria acontecido.
Até onde a sua memória podia alcançar sempre sentiu-se atrasado. Por isso essa busca desesperada, uma contínua e inútil tentativa de sentir-se pelo menos algum dia na hora e lugares certos. Não conseguiu na sua vida várias conquistas simplesmente por questão de centésimos de segundos ou milímetros que se passaram num piscar de olhos ou num fio de navalha. Mas desta vez apesar do atraso sentia que havia realizado uma grande obra prima, algo que surpreendeu até a ele mesmo, que se achava preparado para tudo.
Tentava refazer o caminho que tinha percorrido, buscando em sua mente voraz qualquer tipo de explicação que justificasse o que havia feito... A esquina !! Lembrava-se que quando virou a esquina uma criança esbarrou em sua perna, detestava crianças e principalmente suas mães desleixadas. Mas o mundo estava povoado de crianças e mães, por toda parte onde andava lá estavam elas: gritando, sorrindo, chorando, correndo.
A imagem que guardava de sua mãe não era diferente, uma mulher destraída que também estava sempre atrasada. Ela se esquecia de fazer o almoço, e a vizinha fora buscá-lo na escola centenas de vezes, enquanto sua mãe sonhava acordada na frente da pentiadeira.
O som da água contínua por alguns minutos anestesiou sua mente. Ele nunca desperdiçou tanta água como naquela manhã rotineira, precisava de uma profunda lavagem. Agora era um homem novo, capaz de ir além de duas quadras de sua casa.

5 de julho de 2009

A vida é um campo de milagres

E eu estou aprendendo a colhê-los. Hoje agradeço ao último que me visitou. Numa quarta-feira a noite, depois do supermercado o milagre chegou. Estava esbaforido e inseguro, me ajudou com as compras e ascendeu um cigarro. Precisava me contar um segredo. Eu ouvi e bebi cada momento. Atenta ao milagre eu não dormi duas noites, queria decifrá-lo... Mas milagres são indecifráveis! Vem e vão quando bem entendem, entram sem pedir licença e vão embora quase que de repente. O meu milagre precisava de colo, talvez por isso eu tenha sido sua bênção.

Amém.